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sábado, abril 20, 2024
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    O Filho morreu, e daí?

    Por Rui Matos*

     “Tudo o que fomos permanece na despedida. O que juntamos é o que vai na partida”

    Quando a voz de besouro do locutor da única rádio da pacata cidadezinha nos cafundós do interior rasgou a madrugada anunciando que já era quase cinco horas da manhã, Zé e Mané já estavam na pracinha do centro. Centro e periferia se confundiam, separados apenas por uma rua calçada com pedras irregulares.

    Sentados no banco de cimento que ainda não estava marcado pelo cocô dos pombos, mantinham-se atentos ao que ouviam apesar do chiado que partia de forma impositiva de outro combalido rádio que descansava preguiçosamente sobre o balcão da padaria. Das duas faces da porta de madeira do estabelecimento, apenas uma estava aberta permitindo que a voz rouca com a notícia triste tomasse a rua junto com o filete de luz que clareava a calçada.

    Era o anúncio da morte de Filho. Burburinhos já se formavam nas esquinas e os moradores debruçados nas janelas se encarregavam de espalhar a notícia que todos já sabiam.

    – Perder o Filho foi triste, né?

    – Deixe de ser Mané. O doutorzinho não está nem ai. Lamentar por quê?

    – Você se acha o Zé, né? Insensível. Ele tirou o Filho das ruas e o criou. Não foi assim? – questionou Mané com o coração em pedaços, após também quase encontrar a morte pela contaminação com o Coronavírus.

    O sol já queimava o rosto e o lero-lero entre Zé e Mané continuava. A voz mansa deu lugar a gritos que saltavam das bocas sem receio de incomodar as senhoras que se amontoavam logo atrás para ouvir a blá-blá-blá. Foi quando Mané olhou sobre os ombros e tomou para si o controle da falação, fazendo o grupo se dispersar.

    – Já viu o doutorzinho levar o Filho pra passear na praça?

    – Putz! Não. Nunca vi. Mas acho que a culpa foi da Covid-19, que espantou quase todos das ruas – justificou com os braços abertos, enfiando a cabeça entre os ombros.

    – Das poucas vezes que o vi com o Filho, o pobre coitado estava fedendo de tão sujo.

    – Ô Mané!!! Foi a Covid que o deixou assim, todo meloso? Ou está se sentindo vítima por morar na periferia?

    – Ora, ora! Como se morar no centro fizesse alguma diferença. Talvez tenha sido sim, a Covid. Vi pela televisão que muita gente morreu. Eu mesmo quase parti dessa vida. Logicamente que mudei minha forma de pensar e agir depois de tudo isso. Sobrevivi, né?

    – Então! – completou Zé com semblante de riso.

    – Então nos preocupamos cada um por si e nos esquecemos do coletivo. Filho era parte dessa cidade e nos trouxe muitas alegrias. Estou errado?

    – Errado não está, mas também não está certo. Afinal, Filho não foi mais importante do que qualquer outro finado durante essa pandemia – esbravejou ao se levantar, batendo a poeira da bunda com as mãos.

    – Ao menos, Filho me fazia rir, brincava comigo. Até falava alguma coisa quando escapulia pelo portão, acho! – acreditou Zé, olhando Mané abrir a boca para interrompê-lo.

    – Certamente o doutorzinho irá arrumar outro vira-lata. Filho morreu, e dai? Estamos vivos. A vida continua – sentenciou.

    – E daí, que tudo o que fomos permanece na despedida. O que juntamos é o que vai na partida. A saudade fica, até mesmo a de um vira-lata. Que Deus o tenha.

     – Bora trabalhar, pois, sol madrugueiro não dura o dia todo – disseram juntos.

     *Rui Matos é jornalista e escritor – Instagram: @rui.matos.escritor

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