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sexta-feira, março 29, 2024
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    Pesadelo. Narrativas dos anos de chumbo

    Por José Geraldo de Sousa Junior, do Jornal Estado de Direito

    Em coluna anterior deste Lido para Você abordei o tema da tortura, a propósito de obra editada pelo antigo Ministério dos Direitos Humanos, ao tempo da gestão do Ministro Paulo Vannuchi (http://estadodedireito.com.br/tortura-coordenacao-geral-de-combate-a-tortura/). No texto, mencionei que “sobre a tortura como instrumento da política ainda não há registros fortes, mas cenas recentes das redes sociais têm exibido a prática desse método em abordagens policiais carregadas de racismo, homofobia, misoginia e hostilidade de classe, de todo modo nutrido pelos discursos de altas autoridades que não ocultam a desqualificação de segmentos do social (parasitas na designação de servidores públicos; sub-humanidade para caracterizar indígenas ou para confinar ativistas), em todo caso com apelos de exaltação a torturadores judicialmente reconhecidos, chamados ao paraninfado de uma governança que não disfarça uma postura miliciana. Por isso escolhi para o Lido para Você na Coluna hoje publicada, a leitura de uma obra fruto de um Seminário Nacional que colocou no horizonte da construção democrática e do simbólico do nunca mais, valor central da Justiça de Transição, a objeção sem recuo a toda forma de tortura. Na designação desta obra, descrita na epígrafe, incluo o link para o acesso completo da edição, cujo sumário a seguir transcrito, dá a medida da importância dos temas que ela contêm, todos atualizáveis para advertir os perigos da conjuntura sóbria que atravessamos”.

    Me dou conta, ao interpretar vários sinais, entre eles o de uma governança que dá todos os indícios senão de insensatez, de preocupante insanidade (se se observa a conduta totalmente na contramão de tudo que se observa no mundo para enfrentar a mais terrível pandemia dos últimos séculos), que as ameaças são mais reais que supostas.

    Sem ilusões, mesmo na travessia ascendente de uma quadra democrática e de reconhecimento dos direitos políticos, sociais e econômicos, cuja representação mais eloquente foi a promulgação da Constituição de 1988, celebrada como a carta da cidadania, nunca se perdeu de vista que a história não é linear, que há retrocessos, que a derrota de autoritarismos sobretudo em experimentos nutridos nas tensões decoloniais e nas contradições do modo capitalista de acumulação e seu contrabando opressor – racismo,  patriarcalismo e seu excesso misógino, espoliação de classe, não os elimina e eles ressurgem, sendo imperioso cultivar atitudes de defesa da democracia e dos direitos e não descuidar que o horizonte civilizatório obriga a preservar os fundamentos do nunca mais desenvolvidos na experiência de afirmação da justiça de transição.

    Por isso que, no catálogo de atenção das pesquisas do Grupo O Direito Achado na Rua, esse tema foi sempre uma prioridade e procuramos construir bases para prevenir novos pesadelos, evitar adentrar mais uma vez em anos de chumbo. Para lembrar cuidados político-epistemológicos remeto ao pdf do vol 7, da Série O Direito Achado na Rua: Introdução Crítica à Justiça de Transição na América Latina, contribuição do Grupo de Pesquisa à forte bibliografia do campo, nos anos recentes, no Brasil e no mundo, compreendendo análises teóricas, registro de experiências, programas culturais acentuando marcas de memória, mostras de teatro, cinema e uma literatura que mesmo quando estritamente ficcional, é desesperadamente realista, no sentido que se lhe atribuiu como característica narrativa, o realismo fantástico (https://cjt.ufmg.br/wp-content/uploads/2019/02/DE-SOUSA-JR-Jos%C3%A9-Geraldo.-DA-FONSECA-L%C3%ADvia-Gimenes-Dias.-DA-SILVA-FILHO-Jos%C3%A9-Carlos-Moreira.-PAIX%C3%83O-Cristiano.-RAMPIN-Talita-Tatiana-Dias.-S%C3%A9rie-O-Direito-Achado-na-Rua-vol.-7_compressed.pdf). Também ao audiovisual sobre o mesmo tema e no âmbito do mesmo projeto – O Direito Achado na Rua/Comisão de Anistia do Ministério da Justiça -, produzido pela UnBTV (https://www.youtube.com/watch?v=GB75KS9I8pA).

    Aproveito o mote lançado acima, para me referir à mais recente elaboração que me chega às mãos oferecida pelo Autor, exatamente o livro que agora Leio para Você – Pesadelo. Narrativas dos Anos de Chumbo, de Pedro Tierra, pseudônimo literário de Hamilton Pereira da Silva, seu autor e personagem. Conheço bem o poeta e escritor Pedro Tierra de Poemas do Povo da Noite, Menção Honrosa no Prêmio Casa de las Américas, em 1977, da Missa da terra sem-males, em parceria com Dom Pedro Casaldáliga e Marin Coplas e da Missa dos Quilombos, também com Dom Pedro Casaldáliga e Milton Nascimento, tantas vezes recitados, cantados e encenados em saraus de resistência, além de outros escritos e poemas. Com o político Hamilton Pereira, compartilhei projetos quando ele era Secretário de Cultura no Distrito Federal e eu Reitor da UnB, bastando lembrar a realização do FLAAC 2012, Festival Latino-Americano e Africano de Arte e Cultura, para marcar o jubileu da universidade. Então procuramos dar concretude ao que Hamilton chamou de Sonho de Vanguarda, para designar nessa realização, o que ele compreendeu: A UnB viveu, irmanada com a cidade, todos os momentos decisivos da construção do país nos últimos 50 anos: do sonho e da epopeia da construção e da vanguarda do desenvolvimento, no início dos anos 60, à noite sombria da repressão e do arbítrio, entre 1964 e 1984. Da luta pela reconquista da democracia, ao enfrentamento dos novos desafios de um país que se afirma como nação perante seu povo e no cenário internacional” (Revista FLAAC2012, Brasília, UnB/Decanato de extensão, 2012, p. 2). Sobre ambos, confiram no livro o registro notícia de vida de Pedro Tierra (e de Hamilton Pereira da Silva).

    Pesadelo, conforme o próprio Autor indica, é ficção, mas olhando com atenção, percebe-se que o imaginário é um álibi para mergulhar com obstinação numa realidade dramática que só assim logra vir à tona. Como na obra de Arthur Koestler que se disfarça de literatura mas que revela um processo terrível que vai do zero ao infinito, dilacerando um caleidoscópio de memórias que embalam o que o autor viveu e que não pode deixar de contar, ou ao menos do modo como, se não viveu propriamente, é como lembra para contar (Garcia MarquezViver para Contar: “A vida não é o que a gente viveu, e sim a que a gente recorda, e como recorda para contá-la”). No romance de Koestler (Darkness at noon, publicado em português com o título O Zero e o Infinito), o dramático é que o personagem central construído com os traços de um perfil real, é implicado de tal modo num interrogatório, no qual enquanto todos os seus camaradas confessam-se arrependidos, uns por força de tortura física, outros sem entender as acusações, já que fariam tudo o que a Autoridade lhes ordenasse, ele um revolucionário sincero é convencido a concordar com sua culpa, numa atitude sem alternativa ditada por suas próprias e fidedignas convicções.

    O livro se compõe de narrativas, exaltadas nas cores e nos traços de ilustrações de Elifas Andreato. Fulgurantes nos anos de chumbo, prosseguem na conjuturacomo testemunhos de tempos bárbaros, o mandato social que Pedro Tierra assume, como literatura de resistência, cumprindo, assim, um chamado para dizer por meio da ficção a verdade que não se comporta inteiramente no oficialismo de documentos e que com a imaginação fecundada por memórias, permite iluminar as zonas de sombras que ainda predominam sobre acontecimentos dramáticos. As exceções são gritantes, mas em geral porque vêm animadas por uma vocação oculta. Seja porque assim um Graciliano Ramos, prefeito da pequena Palmeira dos Índios cujos relatórios, publicados em imprensa oficial chamaram a atenção do editor Augusto Frederico Schmidt, no Rio de Janeiro, que procurou saber se aquele prefeito que escrevia balanços burocráticos daquela maneira tinha algum livro guardado na gaveta e acertou: “Caetés”, seu primeiro romance, foi publicado pela editora Schmidt, em 1933. Ou se é um Immanuel Kant e não perde a alta indagação filosófica mesmo em parecer de congregação de carreira em sua universidade para localizar a disciplina filosofia do direito, se na Faculdade de Direito ou na Faculdade de Filosofia (Kant, I. Le Conflit des Facultés. Paris: Librairie Philosophique J. Vrin, 1979).

    Não se inclui também nessa categoria depreciada, o Relatório da Comissão Nacional da Verdade (http://cnv.memoriasreveladas.gov.br/index.php/outros-destaques/574-conheca-e-acesse-o-relatorio-final-da-cnv), retrato de um Brasil cruento, escrito pela fina narração de comissionados de alto esclarecimento profissional e pesquisadores de escol; ou o Relatório da Comissão Anísio Teixeira de memória e Verdade da Universidade de Brasília – (http://www.comissaoverdade.unb.br/images/docs/Relatorio_Comissao_da_Verdade.pdf), também com intensidade narrativa, a ponto de captar o que Tierra registra em Pesadelo: “todo ato de criação é essencialmente um ato de liberdade. Dito de outro modo: a liberdade é o fundamento primeiro de todo ato de criação. Por isso é confundida – e combatida pela ordem – como transgressão”. No Relatório da Comissão Anísio Teixeira de Memória e Verdade da UnB, seus subscritores mostram que o arbítrio não atingiu letalmente apenas as pessoas, no caso da universidade, visou intencionalmente ferir de morte o seu projeto (cf. SALMERON, Roberto. A Universidade Interrompida: Brasília 1964-1965. Brasília: Editora UnB/Edição comemorativa do jubileu da UnB, 2012).

    Na obra de Pedro Tierra, recortes de memória, testemunhos, tributos, formam como que contas de um rosário de confissões (Como em Santo AgostinhoConfissões, Livro X, cap. 3, referindo-se à memória da memória: aquilo que tinha feito contraposto àquilo que era quando estava a escrever. Agradeço a Boaventura de Sousa Santos por ter chamado a atenção exatamente para essa passagem, cf. Sociologia na Primeira Pessoa: fazendo pesquisa nas favelas do Rio de Janeiro. OAB – Revista da Ordem dos Advogados do Brasil. São Paulo: Editora Brasiliense, 1988, p. 40-41: “a auto-invenção, quando autêntica, nunca é arbitrária: é a memória da memória, a reconstrução de uma memória diluída”).

    Em Pesadelo, cada recorte: sinfonia nº 2, o filho do alfaiate, o leitor do livro do apocalipse, coragem, verdades: verdade…, as mãos, os ossos do Rio Verde, se entrelaçam em amarrações dilacerantes (“feridas de morte, as grandes serpentes, nos estertores da agonia, são capazes de sufocar com seus anéis as presas retardatárias, ainda que sejam seus próprios filhos”). Elas evocam engrenagens que roubam substâncias e tornam “um homem sem sonhos”. Mas elas também rastreiam a ética do irredutível nutrida na “confiança entre homens encarceradas”, num exercício visceral para urdir “pelo vai e vem das agulhas manuseadas, medidas em cada gesto”, quando a “palavra…vale pouco”.

    Agora, no Chile, na retomada popular das marchas em protesto à espoliação neoliberal, inicialmente puxadas pelos mapuches, as consignas sintetizaram a disposição social de retomar a subjetividade coletiva emancipatória por democracia e por direitos. A mais expressiva delas: “nos tiraram tanto que nos tiraram o medo”. Se eu posso aferir uma síntese na narrativa de Pedro Tierra é a de que o medo desumaniza. A engrenagem quer “reduzir a zero a consciência de estar no mundo”, porque “anular a consciência dos prisioneiros para convertê-los numa frágil estrutura de carne, nervos, ossos e medo… é rebaixá-los”. Resistir, preservar o humano é exercitar a coragem: “a coragem – aprendemos ali – não elimina o medo: é a sua contraface…a coragem, não há dúvida, é uma dimensão da loucura. Mas dela é possível dizer: ninguém se arrepende de ter tido coragem”.

    É esse humanismo que o livro de Pedro Tierra projeta na tessitura de Pesadelo. Pesadelo que vem da carne moída pela brutalidade, que Barthélemy, em Vichy no colaboracionismo aos nazistas não hesitava sequer ao aviltar os princípios da Justiça, e que ao final banalizava a conduta de homens de bem que não devem “permitir que os remorsos pessoais atravessem o caminho da necessidade cruel”.

    As narrativas de Pedro Tierra são como que marcas da memória, sobretudo quando a mentira política (Hanna Arendt), produzindo deliberadamente o ocultamento, tripudia sobre o pesadelo que se vivencia nos instantes em que o perigo relampeja, e volta a assombrar à custa de uma perversa ação de usurpação cultural da memória e da história.

    Enquanto os arquivos da repressão ainda permanecem restritos à sociedade civil, dissemos eu e Nair Heloisa Bicalho de Sousa, em nosso texto de apresentação ao volume 7, da Série O Direito Achado na Rua (Justiça de transição: direito à memória e à verdade, conf. acima), “em parte por se manterem deliberadamente ocultados e em parte por apresentarem objeção sonegadora de agentes ainda resistentes e insubordinados ao comando legal e das autoridades constituídas […] isso retrata, de certa maneira, uma tendência a deixar no esquecimento os fatos reveladores das práticas políticas do regime autoritário. Vê-se, assim, com Pollack (1989), que memória e esquecimento são eixos fundamentais da esfera do poder, disputando o modo como a memória coletiva constrói-se em cada sociedade”. Em outro texto (Direito à memória e à verdade, Observatório da Constituição e da Democracia. Brasília: Faculdade de Direito da UnB, n. 17, outubro e novembro de 2007), avançamos esse ponto para reafirmar que “esta memória coletiva está em processo de construção e necessita que as diferentes gerações tenham conhecimento da verdade. É tempo de reivindicar a verdade. É tempo de reivindicar a verdade e de resgatar a memória, como referências éticas para conter a mentira na política, pois, como lembra Hanna Arendt, ‘uma das lições que podem ser apreendidas das experiências totalitárias é a assustadora confiança de seus dirigentes no poder da mentira e na capacidade de reescreverem a história para a adaptar a uma linha política’”.

    Neste 31 de março de 2020, a ordem do dia do governo, pelo ministério da defesa, representou um novo capítulo nesse desvio. Contra o nunca mais, no ocultamento do pesadelo cruento do regime ditatorial instalado com o golpe de 1964, fala nesse experimento inanistiável – enquanto os cadáveres não sejam localizados e as responsabilidades pelos crimes de morte, tortura e exílios forçados não forem imputados – como se fora um “marco para a democracia brasileira”.

    Explicando porque Pesadelo como título Pedro Tierra refere-se ao círculo perfeito, aludindo ao risco de reinserção do futuro no passado para nos condenar a recomeçar do zero, se perdermos os referencias de comparação entre os acontecimentos pré 1964 e aqueles pós 2016 (Golpe contra o projeto democrático-popular).  Para isso o livro de Pedro Tierra. Para afrontar esse risco. Com Walter Benjamin, em forma literária, por isso contundente, a história é escovada a contrapelo. Cuida-se de articular historicamente o passado não para conhecê-lo “como ele de fato foi”, mas antes, “apropriar-se de uma reminiscência, tal como ela relampeja no momento de um perigo”.

    Leal em seu ofício de escritor, Pedro Tierra em Pesadelo, “faz brotar tal como ele divisa o papel da literatura, uma narrativa para além do simples relato da ação que brota da experiência e das vontades coletivas”. Ele cumpre seu papel de intelectual engajado: “identificado com a necessidade de transformações sociais, será sempre presa dessa angústia de fazer parte de algo que remete a sonhos coletivos, a vontades coletivas. Talvez para compensar a doença profissional da solidão” .

    Mas o faz com duplo efeito. Intérprete, ao estilo de Graciliano, autor com quem parece se identificar nos temas e no estilo cortante, escreve como se retirasse o couro à verdade, tal como Roberto Lyra Filho o percebeu em depoimento para o livro que a filha do grande escritor Clara Ramos organizou: “sob aquela aparência de mandacaru o velho Graça escondia uma ternura aconchegante”. O texto de Pedro Tierra, como o de Graciliano, me valho de Lyra Filho, representa o despojamento, escorado na rija integridade moral e literária. Sua intransigência não confundia preocupação social e discursos gasosos”.

    Os ensaios de Pedro Tierra na obra respondem aos socos, e aos choques que “transformam carne em dor”, e tornam o sofrimento o revide de seu mandato de escritor. “Como toda tirania, diz ele, gera no seu exercício explícito ou dissimulado o impulso, a força que um dia a lançará por terra, em tempos de tirania, escrevo para quem está predisposto a indignar-se e lutar contra ela”. Mais que isso, escreve para anunciar, no presente cinzento que já anuvia o horizonte político, contra a tentação autoritária que se prenuncia, que se cuidem, porque não podem evitar “a ressurreição dos insubmissos”!

     

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